A correspondência entre Pessoa e Côrtes-Rodrigues no final de 1914 e no início de 1915 documenta um período de crise cujos motivos, sem excepções evidentes, não têm sido devidamente escrutinados. Na carta de 19 de Janeiro de 1915, a mais importante da série, essa crise, pelo menos em parte, parece resolvida. Fazendo apelo a um critério de sinceridade que, embora difícil de definir, será operativo em boa parte da sua obra adulta, Pessoa isola ostensivamente a obra heteronímica, privilegiando-a, do resto da sua produção poética. O facto de Orpheu se ter alicerçado em muito daquilo que Pessoa, dois meses antes, parecia disposto a abandonar requer, portanto, justificação. A justificação que proponho, neste ensaio, faz-se acompanhar de uma descrição da obra de Pessoa que procura fugir ao melindre, tão comum quanto desnecessário, de ter de fazer equivaler ao melhor que o poeta produziu aquilo cuja produção, por escrúpulo próprio, passou a deplorar.