“A Carta da Corcunda para o Serralheiro”, assinada por Maria José, começou por ser difundida num espectáculo de teatro em 1988 (pela actriz-encenadora Maria do Céu Guerra) dois anos antes de o dactiloscrito se ver publicado em livro, pela primeira vez, por Teresa Rita Lopes. Parte-se da evidência de ter sido o teatro a revelar a destinação dramática da epístola singular do único heterónimo mulher que Fernando Pessoa inventou, que terá sido também o último a ser criado pelo autor. A construção dramática de Maria José pode ser aproximada às estratégias de construção de personagem na dramaturgia realista de Anton Tchekov, de um modo que se distingue de outras experiências dramatúrgicas de Pessoa. A análise do ascendente de Tchekov sobre as pesquisas de Stanislavski, bem como a importância da concepção de tragicómico em Schopenhauer, que se projecta em simultâneo sobre o teatro de Tchekov e sobre o perfil de Maria José, são linhas de leitura propícias para esta aproximação entre Pessoa e o ficcionista e dramaturgo russo. As leituras de textos de Tchekov por parte de Pessoa (como o caso da peça Tio Vânia e o conto “Vanka”) fornecem dados relevantes para avaliar a magnitude deste encontro.